quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Dos que desprezam o corpo

ASSIM FALOU ZARATUSTRA
Friedrich Nietzsche

Dos que desprezam o corpo

Aos que desprezam o corpo quero dar o meu parecer. O que devem fazer não é mudar de preceito, mas simplesmente despedirem-se do seu próprio corpo e, por conseguinte, ficarem mudos.
“Eu sou corpo e alma”- assim fala a criança. – E por que se não há de falar como as crianças?
Entretanto o que está desperto e atento diz: - “Tudo é corpo e nada mais; a alma é apenas nome de qualquer coisa do corpo”.
O corpo é um razão em ponto grande, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.
Instrumento do teu corpo é também a tua razão pequena, a que chamas espírito: um instrumentozinho e um pequeno brinquedo da tua razão grande.
Tu dizes: - “Eu e orgulhas-te dessa palavra. No entanto, maior – coisa que tu não queres crer – é o teu corpo e a tua razão grande. Ele não diz Eu, mas: procede como Eu.
O que os sentidos apreciam, o que o espírito conhece, nunca em si tem seu fim; mas os sentidos e o espírito quereriam convencer-te de que são fim de tudo; tão soberbos são.
Os sentidos e o espírito são instrumentos e joguetes; por detrás deles se encontra o nosso próprio ser. Ele examina com os olhos dos sentidos e escuta com os olhos do espírito.
Sempre escuta a esquadrinha o próprio ser: combina, submete, conquista e destrói. Reina, e é também soberano do Eu.
Por detrás dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um senhor mais poderoso, um guia desconhecido. Chama-se “eu sou”. Havia no teu corpo; é o teu corpo. Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E quem sabe para que necessitará o teu corpo precisamente da tua melhor sabedoria?
O próprio ser se ri do teu Eu e dos seus saltos arrogantes. Que significam para mim esses saltos e vôos do pensamento? – diz.
Um rodeio para meu fim. Eu sou guia do Eu e o inspirador de suas idéias.
O nosso próprio ser diz ao Eu: “Experimenta dores! E padece e medita em não padecer mais; e para isso deve pensar. O nosso próprio ser diz ao Eu: “Experimenta alegrias!”Regozija-se então e pensa em continuar e regozijar-se freqüentemente; e para isso deve pensar.
Quero dizer uma coisa aos que desprezam o corpo: desprezo aquilo a que devem a as estima.
Quem criou a estima e o menosprezo e o valor e a vontade?
O próprio ser criador criou a sua estima e o seu menosprezo, criou sua alegria e sua dor. O corpo criador criou a si mesmo o espírito como emanação da sua vontade.
Desprezadores do corpo: até na vossa loucura e no vosso desdém sereis o vosso próprio ser.
Eu vos digo: o vosso próprio ser quer morrer e se afasta da vida.
Não pode fazer o que mais desejaria: criar superando-se a si mesmo.
É isso o que ele mais deseja: é esta a sua paixão toda.
É, porém, tarde demais para isso: por isso até o vosso próprio ser quer desaparecer, desprezadores do corpo.
O vosso próprio ser quer desaparecer: por isso desprezais o corpo! Porque não podeis criar já, superando-vos a vós mesmos. Por isso vos revoltais contra a vida e a terra. No vosso olhar desdenhoso transparece uma inveja inconsciente.
Eu não sigo o vosso caminho, desprezadores do corpo! Vós, para mim, não sois pontes que encaminhem para o Super-homem!”
Assim falou Zaratustra.

Este texto maravilhoso foi um presente do sempre presente e amado Clênio Magalhães para o blog. Excelente. Keu, toda minha gratidão e amor.

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