segunda-feira, 9 de novembro de 2020

A foto mais bonita do mundo

Durante todo esse tempo eu achava essa foto maravilhosa. Me percebia bonito e lembrava de como eu me sentia nesse exato momento: lindo! Não sei se eram os botões da camisa que me faziam me considerar mais maduro. O fato é que me achei lindo nesse dia e pedi ao fotógrafo - Seu Florisvaldo - para tirar esse retrato, embora eu não passasse de “bonitinho” para as pessoas, como uma miss simpatia. O padrão de normalidade não permite (ventos de mudança começam a soprar) se considerar uma pessoa com deficiência, realmente bela, há sempre um “mas”, um “apesar de”. Porém, hoje em dia, essa foto me revela outra coisa que eu esqueci durante muitos anos (a terapia deve explicar). Aí, eu estava no aniversário de uma amiguinha da rua onde eu morava e eu passei a festa toda sozinho. Me colocaram nesse sofá da sala, enquanto tudo acontecia na área externa. Sempre vinham me servir salgadinhos, doces e refrigerantes, mas eu passei uma festa inteira brincando sozinho. Essa fotografia deve ter sido o jeito que eu encontrei para me fazer presente ali. Eu sempre falo das sutilezas da bipedia e não estou culpando ninguém. Dentro da lógica bípede, talvez, ali fosse o melhor lugar que pudesse estar. Melhor do que ficar na mesa com adultos, já que as crianças corriam pelo pátio brincando. Hoje, eu olho esse menino sorridente e choro. A nossa solidão é algo que só os pares entendem. É como enfiar a cabeça embaixo d’água no mar. Algo que é único e pessoal. Só nós sabemos o silêncio que ouvimos dentro de nós, embora as ondas façam barulho ao redor. Ah, eu acredito que a Miss Simpatia ainda pode ser a mais bonita do mundo, assim como esta foto.

Super-Homen de cabeça para baixo ou porque sempre odiei o Teleton

Super-Homen de cabeça para baixo ou porque sempre odiei o Teleton e não é de agora. Em 2011, eu escrevi sobre o assunto quando ainda não ouvia falar sobre capacitismo, não estudava propriamente a deficiência e ainda não elaborava as questões como venho desenvolvendo agora, mas já sentia que esse programa reproduz e reforça o discurso tudo que combato há muito tempo. Caridade, filantropia é um projeto político histórico (está nos livros) de responsabilizar a sociedade civil e outras instâncias com aquilo que deveria ser responsabilidade do governo. Programas desse tipo, inclusive, muitas vezes, servem ao enriquecimento ilícito de alguns. Não estou questionando o trabalho da ACCD que é a instituição beneficiada com o Teleton, estou criticando a manipulação do uso da deficiência para comover e conseguir dinheiro. É manter a caridade com o discurso da pena e da culpa de quem tem mais dar a quem tem menos. Colaborar com um programa promovido e financiado por bolsonaristas, Silvio Santos, dono da Havan, etc... é inadmissível. Não se trata de "agora eles estão querendo mudar o discurso". Não é possível mudar o discurso porque o Teleton só existe por e para ser capacitista. Precisa comover para conseguir doações e comove apelando para a imagem fragilizada, dependente ou da superação da deficiência. É do cerne da existência desses projetos. Essa é uma questão estrutural, uma ACCD precisa da caridade pela falta de políticas públicas que garantam, de fato, nossos direitos em todos os âmbitos. É porque não brigamos pela efetivação dessas políticas, do investimento real na educação, saúde, mobilidade. Cadê nossa presença em outros programas, protagonizando novelas, jornais, apresentando nas tarde de sábado? Isso poderia efetivar mudanças reais. Esse problema se prolonga, exatamente, porque quem pensa a respeito e, mais recentemente, aparece criticando esse sistema em suas militâncias, cai no canto da sereia e reforça o discurso com sua presença esperando angariar likes e seguidores. Edu, mas o que tem a ver o Super-Homem de cabeça para baixo?

Malu Marley - primeira cadeira

Nem sei que idade eu tinha nessa foto, talvez entre 13 e 14 anos. Para mim, o que importa nela é Malu Marley - a minha primeira cadeira de rodas. Sempre nomeei minhas cadeiras com nome e sobrenome de artistas que admirava. Como vocês devem saber, eu tive poliomielite com 1 ano e só aos 13 ganhei Malu. Até então, eu me deslocava apenas engatinhando em casa e carregado na rua. Essa experiência é determinante em muitos aspectos da minha vida. Viver seguindo o trajeto que a pessoa que me carregava escolhia, decidia por mim. Até hoje, tenho dificuldade em andar sozinho com a cadeira, me bato nas pessoas, não sei para que lado desviar, a velocidade... e quando me empurram ainda guardo a experiência corporal de não poder escolher meu próprio caminho. As sutilezas e subjetividades da relação com a bipedia são tão intensas e marcantes, linha tênue entre o cuidado e exercício de poder, entre dependência e autonomia... e eu me expondo não sei pra que. Mas queria que vocês conhecessem Malu Marley. Nesse dia, estava em um sarau, recitando Castro Alves. Ainda tem a poesia da lembrança, não posso esquecer. E a nota do bogodinho? Kkkk Na imagem, estou em uma cadeira de rodas azul, maior do que eu, de manivela do lado direito. Eu, de paletó e gravata borboleta mal colada no colarinho, segurando um livro branco nas pernas, de bigode e sobrancelhas engrossados com lápis de maquiagem e boca semi aberta falando. Eu ainda tinha cabelo e franjas de escova.