terça-feira, 18 de setembro de 2018

Nós perdemos

por Edu O.

NÓS PERDEMOS. Algo não deu certo, não foi bem calculado, não encontramos estratégias que mudassem ou, pelo menos, balançassem as estruturas do status quo”, da normalidade, do pensamento hegemônico. É com imensa tristeza que eu anuncio que NÓS PERDEMOS.

Perdemos porque ainda hoje precisamos discutir sobre inclusão na arte, precisamos brigar para termos algum espaço, para sairmos da invisibilidade que nos impõem nos espaços de saber, nos espaços midiáticos, nos espaços culturais que nos restringem a uma única história.

E a única história, já nos falou Chimamanda Adichie:

"A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos, não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se uma única história". 

NÓS PERDEMOS, amigos! Porque não conseguimos ser vistos para além da deficiência. Não interessa se estudamos, não interessa ser professor na Escola de Dança da UFBA, não interessam as inúmeras experiências que vivemos, as viagens que fizemos, nossa compreensão de mundo, nossos posicionamentos, nada, nada… 

Importa apenas a vaga de empacotador, de telemarketing, de flanelinha na esquina… oportunidade que a “generosidade” bípede nos oferece, sem possibilidade de crescimento profissional. Sem escuta atenta porque "a lei exige que tenha o balcão rebaixado, mas não exige que as máquinas estejam nele”, como disse o gerente de um banco ao ser questionado pelo funcionamento do atendimento acessível que não acontecia de fato porque a máquina para eu digitar a minha senha ficava no balcão mais alto. Importa a arrogância da ignorância dos gestores de espaços culturais que negligenciam a acessibilidade para artistas com deficiência no palco, nos camarins, na reserva de espaços para melhor visibilidade do público. Não importa se aquilo nos constrange, nos humilha, nos violenta.

Não importa quando no meu local de trabalho, por mais solicitação para manterem a entrada acessível em todos os eventos que acontecerem lá, fecham o portão da rampa por questão de segurança e ainda você tem que ter “calmaaaaaa! esses dias a Escola está com problemas”. Para mim "esses dias", são 20 anos que frequento aquele lugar.

Há 20 anos eu me deparei, pela primeira vez com essa noção de Inclusão e foi aí que eu soube que era excluído. Porque em Sto Amaro, cidade pequena do interior da BAhia, sem esse discurso e com todos os problemas de acessibilidade, eu transitava em todos os lugares, mas quando fui para Salvador, com 18 anos e quando eu comecei a Dançar, em 1998, eu ouvi algo como “Dança inclusiva”. Eu pensei, “perai, mas quando eu pinto um quadro, faço uma escultura ou um desenho - eu estudava na Escola de Belas Artes, nessa época - meu trabalho não tem esse complemento de inclusivo. Por que a Dança precisa ter? Precisa destacar uma diferença, sendo que a diferença é o que nos aproxima. Quem aqui é igual a quem? Por que a minha Dança é inclusiva apenas por eu ter uma deficiência? Mas meu corpo possibilita fazer e criar coisas que nenhum outro pode ou consegue, assim como eu não consigo fazer ou criar coisas que outra pessoa consegue. E isso não me torna pior, nem melhor do que ninguém. 

Esse pensamento de INCLUSIVO ou INCLUSÃO, na arte, nos fez perder. Nos isolou.

Por isso que eu repito: NÓS PERDEMOS!

Perdemos quando Estela Laponni lança um filme que traz uma abordagem completamente decolonial do corpo com deficiência, do próprio cinema, introduz a tecnologia assistiva como linguagem no filme e não como acessório e seu filme, como os demais que tratavam no tema da deficiência, é colocado numa mostra “café com leite”no Festival de Curtas de SP, que aconteceu recentemente. Nem a oportunidade de ganhar prêmio essa parte do Festival possibilitava. Por que? Por que nos colocar no “cercadinho da deficiência”? Na “cadeira da reflexão da INCLUSÃO”? Alguém em sã consciência e gozando de plena lucidez, considera isso Inclusão?

Quantas vezes algum artista com deficiência é convidado para Festivais, Congressos, Mesas ou  Eventos que não seja para falar sobre a deficiência? Isso é INCLUSÃO?

Quantas vezes nós já ouvimos: você nem parece deficiente! Ahh, eu olho para você e não vejo a deficiência! como se isso fosse um elogio, como se isso nos agradasse.

Ai, amigos, NÓS PERDEMOS!

Perdemos porque servimos para publicidade de governo se aproveitar da nossa imagem, mas quando acionamos a Justiça para nos defender de abusos e violências, os juízes minimizam nossos problemas que, na maioria das vezes vem de ordem das barreiras atitudinais, e não pune o banco, a delicatessen que não tem acessibilidade e quase permite eu ser atropelado no seu estacionamento, o Ministério Público dizer que não vale a pena brigar com o Estado porque era causa perdida quando se PROCON se recusou a me atender, a justiça diminuir a indenização da TAP por ter quebrado minha cadeira. Perdemos quando preciso implorar para algum Uber ou taxista ou motorista de ônibus parar e levar a cadeira. Mas não interessa se somos nós que ficamos no meio da rua chorando, se perdemos o sono, se adoecemos a cada saída com medo da violência.

No entanto aceitamos todas as migalhas que a INCLUSÃO nos oferece, na esperança ou tentativa de sermos ouvidos, mas sempre ficamos como o pinguim gritando por socorro no aquário, sem ser entendido pela plateia que pensa estar assistindo a um show de fofura do bicho que quer dançar, contrariando as expectativas de sua família - no filme Happy Feet.

A INCLUSÃO comove. A INCLUSÃO é uma fatia de mercado que beneficia todo mundo, menos a pessoa com deficiência. O discurso inclusivo é tão perverso quanto mentiroso. Participar de eventos específicos que normalmente não pagam cachê, não tem estrutura técnica adequada, mas “será bom para divulgar seu trabalho!”. Divulgar a quem? Se nós falamos para nós mesmos? Se quando subimos ao palco, só tem na plateia nossa família chorando porque de alguma forma nós representamos o esforço descomunal que ela faz para sobrevivermos, tem a fisioterapeuta, a diretora da instituição, os funcionários e a professora de Dança que provavelmente não tem formação em Dança e os colegas que aplaudem eufóricos aquela apresentação com música melosa ou religiosa, induzindo à comoção e à visão de superação que o discurso da INCLUSÃO insiste em manter, um figurino mal pensado, de lycra ou malha, maquiagens fortes e movimentos que buscam aproximações com o corpo sem deficiência, o corpo pensado hegemonicamente para a Dança, como se devêssemos provar que conseguimos fazer aquilo.


E eu falo da Dança porque é minha área de atuação, mas é o mesmo para todas as outras áreas. É o mesmo para a vida!

Leo Castilho e Oscar Capucho na performance O Bicho, o Amigo e o Santo
I Encontro Corpos Mistos- II Congresso "Autismo, dança e educação" - UFMG
foto Maria Paula Carvalho

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