quinta-feira, 2 de setembro de 2010

JULIOS (Clênio Magalhães)

De
Clênio Magalhães

Para
O CORPO PERTURBADOR
De
Edu O.
2010-08-29

Julia era uma menina, estudante, de dezesseis anos de idade. Sua pele negra como a braúna e rosto anguloso davam-lhe um ar de princesa de outro mundo. Ela vestia um vestido azul de chita surrada, com muitas flores e babados que lhe cobria todo o corpo. Apareciam as suas mãos, os braços, pequena parte dos ombros, o colo dos seios, pescoço, cabelos e rosto. Seus cabelos encaracolados pareciam artificiais e vivos. Suas muletas eram douradas, ela mesma as pintou com spray. Pareciam-lhes dois braceletes africanos. Julia só tinha a perna esquerda, era bi destra, campeã de dominó, usava unhas grandes e não se depilava.

Perdeu sua perna num acidente de carro quando voltava de uma festa bêbada com as amigas. Das cinco garotas foi a única sobrevivente. Seu pai, mecânico, sua mãe dona de casa e sua irmã bebê. Todos dividiam o espaço de uma casa de dois cômodos de chão batido no alto de um morro há trinta quilômetros do perímetro urbano da cidade.

Julia estava no aeroporto à espera de Julio, um rapaz de dezoito anos que ela conheceu pela internet. Eles já se conheciam há dois anos. Moravam há quinze mil quilômetros um do outro e só mantinham comunicação pela lanhouse pelo menos uma vez por semana.

Julio era um menino de dezoito anos de idade. Sua pele branca como um algodão e olhos acinzentados davam-lhe um ar de príncipe de outro mundo. Ele vestia um terno preto, com leve brilho, com camisa branca e gravata vermelha. Apareciam as suas mãos, o pescoço, cabelo e rosto. Seus cabelos lisos pareciam escorrer pela pele da nuca. Seu relógio e anéis dourados, de ouro e pedras. Parecia uma personagem colada na paisagem cotidiana. Julio era estéril, destro, campeão de bilhar, usava cuecas de algodão e não se depilava.

Perdeu sua fertilidade numa brincadeira à beira de um rio. Foi ferido por um galho de árvore que descia a correnteza. Seu pai pedrista e lapidário, sua mãe artesã e tinha mais três irmãos mais velhos. Todos dividiam o espaço de uma ilha de dois kilômetros de raio, entre montanhas há trinta quilômetros do perímetro urbano da cidade.

Julio desembarcava ao encontro de Julia, uma moça de dezesseis anos por quem ele estava perdidamente apaixonado. Eles decidiram ficar juntos há seis meses. Eles agora morariam no mesmo espaço e manteriam um relacionamento eternamente juntos.

Casaram-se.

Cinco anos depois Julia perdeu a luz e caiu em profundo pânico. Seu amor por Julio era muito grande e percebia como sua presença na vida dele o impedia de seguir todos os juízos demandados pela família. Sentia-se um peso na vida dele e pensou em se matar. Mas então pensou como seria penoso para ele viver com esta lembrança e então decidiu romper o casamento.

Julio não compreendia. Estava tudo pronto. Tudo que haviam planejado. Estava indo tudo bem para ele. Falava da família, mas falava de amor, de lembranças, de saudades. Ele já havia decidido passar por cima de tudo e de todos para ficar com Julia.

De nada adiantou suas justificativas. Julia estava presa ao preconceito de si mesma. E o expulsou de sua vida.

Julio foi se embora.

Julia trancou-se no quarto durante cinco anos e de lá só saía para suas obrigações. Tornou-se enfermeira. Era excelente em tudo que fazia dentro da sua fria rotina eficaz.

Até que um dia recebeu a notícia de que Julio o aguardava na recepção do hospital. Ela estava usando um vestido branco que lhe cobriam o joelho, tênis branco, coque, muletas prateadas do hospital. Ele vestia um terno de linho bege, sapato preto, panamá, e usava muletas esportivas. Estava de pé à espera de Julia com flores e chocolates.

Julia foi ao chão.

Julio teve sua perna esquerda amputada por uma lâmina do lapidário logo que se separaram. Seguiu a profissão do pai, mas não podiam envolver-se nos mesmos negócios. Até que um dia decidiu voltar e reencontrar Julia, pois agora ele saberia como cuidar dela, pois já havia aprendido a cuidar de si mesmo.

Tornaram-se servos de si mesmos.

Viveram juntos eternamente. Fizeram muitos amigos que lhe chamavam de “Casal de Julho”, pois além de xarás, ambos nasceram em Julho. Viveram uma vida feliz, tranqüila e abençoada.

Aos oitenta anos de Julia, deitados na cama antes de dormir, abraçados, segundos anteriores da partida ela disse:

- Ju! Ela o chamava assim.

- Diga minha princesa!

– Você acredita mesmo em Deus?

Ele deu um longo suspiro e disse sorrindo:

- Ele me enviou para buscá-la há sessenta e quatro anos atrás, mas você não quis ir, então eu tive que ficar. E para ficar teria que provar meu amor em sacrifício, e aguardar-te. Amputei-me no desejo de abrir mão do que me excluía de você...

A esta altura Julia já pegara no sono.

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