sexta-feira, 30 de julho de 2010

As contradições do corpo

Foto de André Baliú

Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.

Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assustar,
tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais que me sei.

Meu corpo apaga a lembrança
que eu tinha de minha mente.
Inocula-me seu patos,
me ataca, fere e condena
por crimes não cometidos.

O seu ardil mais diabólico
está em fazer-me doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a cada instante
e me passa em revulsão.

Meu corpo inventou a dor
a fim de torná-la interna,
integrante do meu Id,
ofuscadora da luz
que aí tentava espalhar-se.

Outras vezes se diverte
sem que eu saiba ou que deseje,
e nesse prazer maligno,
que suas celulas impregna,
do meu mutismo escarnece.

Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertidoem cão servil.

Meu prazer mais refinado,
não sou eu quem vai senti-lo.
É ele, por mim, rapace,
e dá mastigados restos
à minha fome absoluta.

Se tento dele afastar-me,
por abstração ignorá-lo,
volta a mim, com todo o peso
de sua carne poluída,
seu tédio, seu desconforto.

Quero romper com meu corpo,
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
e vai pelo rumo oposto.

Já premido por seu pulso
de inquebrantável rigor,
não sou mais quem dantes era:
com volúpia dirigida,
saio a bailar com meu corpo.

(Carlos Drummond de Andrade)

Em 2009 participei de um workshop de Elisa Lucinda onde ela dava aulas de poesia falada, bem ao seu estilo, num trabalho maravilhoso de uma mestra com total conhecimento da palavra, do português, da poesia. Ter contato com Elisa é um privilégio. Ter contanto com a obra de Drummond então...
Ele é meu poeta preferido e esta poesia escolhi para abrir o espetáculo O Corpo Perturbador. Na ocasião do workshop foi emocionante descobrir esse texto, suas entranhas, suas nuances. Recebi um elogio de Elisa que me deixou nas nuvens. Ela dizia que este poema falado por mim tomava um significado e uma dimensão que nem o próprio Drummond imaginaria. Imagine ai?

3 comentários:

  1. Edu,
    Drummond é mesmo sagaz, faz da pedra o caminho, faz do corpo um amontoado de almas...
    Reverencio tuas preferências, amigo...

    Abraço mineiro,
    Pedro Ramúcio.

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  2. otimo saber que podems contar c vc.

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  3. muito efiscente o poema como sempre igual ao ods outros

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